Srta. Celofane


Os últimos dias tem sido agradavelmente agitados. Tenho sido produtiva não só com coisas para mim, mas também ajudando os outros. Esse carnaval encostado em janeiro me fez ter que correr, mas não de uma forma ruim. Meu estágio como mediadora, meu trabalho como psicoterapeuta, minhas aulas como aluna de psicologia e um programa de extensão sobre acessibilidade fluindo como esperado. Fora umas bobagens pendentes.
Uma das pendências foi meu passaporte, vencido há meses. Reúno documentos, pago GRU, agendo tudo. Para mim e para minha mãe. Eis que chega o dia e logo na entrada, na hora da recepcionista do SAC (Serviço de Atendimento ao Cidadão) checar meus  documentos para me mandar pro posto da Polícia Federal, eu tomo uma daquelas tijoladas disfarçadas de micro ofensa.
Eu em frente ao balcão, passei os documentos para ela, que olha para minha mãe e pergunta, apontando para mim:
-Quantos anos ela tem?
Acho difícil alguém não entender o quanto eu me senti ofendida aí, invisível, transparente feito papel celofane, mas vou explicar. Afinal, muitas vezes quando não dói na pele, distinguir ofensa dolosa de "não fiz por mal, me desculpe" é complicado. Por exemplo, uma pessoa que não precisa escolher a roupa que vai vestir na rua, para evitar ser assediada também tem dificuldade de entender que ouvir palavras obscenas de um estranho na rua não é cantada.
Eu já contei, nesse blog inclusive( aqui e de novo), como as pessoas me tratam como se eu não pudesse falar por mim mesma, por eu ter uma deficiência. Já aconteceu de recepcionista de clínica entregar minha ficha pra um estranho só porque ele tava sentado do meu lado e ela ACHOU que ele era meu acompanhante, afinal, eu não posso estar ali vivendo minha vida sozinha. Para a moça do SAC, eu não podia responder a minha idade. Ela não quis ter o cuidado de me olhar, talvez porque seja muito ofensiva minha presença diversa e perguntar algo que você pergunta a qualquer criança que você veja que já fala algo além de um "gugu dá dá".
Porque o mundo prefere supor que eu não posso falar sobre mim. E olha que eu posso dizer que tenho o privilégio da semelhança (muito bem dito por Fatine, no seu blog disbuga), não há nada que me faça parecer muito nova ou incapaz de falar por mim mesma, nenhuma deformidade importante, nenhum impedimento aparente, como uma traqueostomia, por exemplo. (Ainda que fosse esse o caso, não é assim que se aborda). As pessoas simplesmente supõem minha incapacidade, ainda que eu passe o dia dando provas do que eu posso fazer. Você imagine o que passa todos as pessoas com deficiência que tem alguma lesão que modifique a fala, que tenha um tamanho pequeno ou se utilize de alguma tecnologia assistiva para se comunicar?  Quantas dessas pessoas são diariamente silenciadas?
Eu vivo de lá pra cá, cuidando de pendências minha casa, de minha família, vendo meus amigos, indo para minha segunda faculdade, meu trabalho e porque não dizer, cuidando para que o mundo veja mais gente como eu por aí, ainda sou vista como um objeto estático incapaz de sequer se incomodar com alguém me ignorando. Imagine todos as pessoas com deficiência que estão por aí, sendo impedidas de sair de suas casas pela falta de acesso nas calçadas e transporte públicas, o quanto ficam invisíveis.
Ainda que na hora dê vontade de dar aquele barraco, bata o arrependimento por não ter feito e posteriormente tenha vontade de sumir para um lugar em que eu não precise mais passar por isso, eu venho aqui expor minha ferida.
Apenas porque, enquanto me silenciam de maneira tão mascarada, eu ainda tenho voz.
Vale finalizar dizendo que a moça não gostou muito da cara de espanto que fiz quando a indaguei:
- Você tá falando comigo? Porque eu tenho 28 anos. Você achou que eu tinha menos?
Afinal, que exagero meu se ofender, né? Ela não fez por mal, mulheres de 28 sem deficiência devem chegar lá e ouvir o mesmo tipo de pergunta sempre.
ENTÃO TÁ.

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